Almeida Garrett, O Arco de Sant’Ana: crónica portuense
Tomo I, 1.ª edição, Lisboa: Imprensa Nacional, 1845, p. 69
Biblioteca Nacional de Portugal
Almeida Garrett, O Arco de Sant’Ana: crónica portuense
Tomo I, 2.ª edição, Lisboa: Tipografia da Revista Popular, 1851, p. 79-82
Biblioteca Nacional de Portugal

No final do capítulo V d’O Arco de Sant’Ana o autor prometia um retrato das personagens em ação: “Deixemo-los daguerreotiparem-se aos olhos mesmos do leitor, e à luz de seus próprios ditos e gestos, segundo lhos vamos contando”. De facto, na 1.ª edição do romance (1845) o protagonista, Vasco, é caracterizado muito sumariamente, como um estudante de 19 anos que sonha tornar-se físico d’el-rei e casar com a namorada Gertrudes. Na 2.ª edição (1851), porém, surge uma alteração que desmente o propósito inicial: “Do nosso estudante falemos pouco mais” – anuncia o narrador, na abertura de uma longa sequência descritiva.

Na versão amplificada, o retrato de Vasco densifica-se com pormenores sociais e psicológicos – tem bom coração, mas um espírito irreverente, “móbil”, mais dado ao sentimento do que ao pensamento; as suas variadas ambições chocam com uma situação dilemática, pois é protegido do bispo e apaixonado por uma revolucionária. No capítulo VII verificam-se outras amplificações, colocando a personagem nos “abismos” da melancolia: o apoio dado à causa política alterará de forma irreversível a vida fácil que conhecera, determinará escolhas dolorosas, traições e desenganos. Adivinha-se a transformação da alma inocente de Vasco num espírito “contorcido” pelas malhas sociais.

Esta variação explica-se por contaminação autoral. O novo perfil do protagonista evoca a caracterização rousseauniana do herói de Viagens na Minha Terra – o Adão natural que a sociedade sempre desfigura. Há assim uma translação desta obra de atualidade, que Garrett concluíra em 1845-1846, para a versão revista do romance histórico, cinco anos depois: o tempo que medeia entre as duas edições d’O Arco de Sant’Ana permitiu-lhe enxertar numa personagem plana os traços modernos de um herói romântico.

Maria Helena Santana |

Universidade de Coimbra